quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

NINHO DE CAPOTE

A galinha d'Angola veio da África trazida pela colonização portuguesa.
Adaptou-se com facilidade ao país e hoje está presente em todas as regiões, sendo ave comum nos quintais e propriedades rurais, recebendo diversas denominações, como "tô fraco", guiné, cocá, capote, etc.
Bicho arisco, dificilmente se deixa apanhar, vivendo em bandos, desconfiados, arredios e rústicos. Ao menor sinal de perigo, emitem um som característico, cujo trilado ensurdecedor pode ser ouvido de longe.
No segundo semestre do ano começam a fazer seus ninhos, em lugares muito bem escondidos e disfarçados, de folhas e gravetos, para despistar possíveis predadores.
As fêmeas começam a emitir um som diferente, espécie de chiado, denunciando o tempo de postura. Nas propriedades rurais é sempre um desafio encontrar os ninhos de capote, para a coleta dos ovos.
Várias fêmeas põem ovos num mesmo ninho, raramente chocando, fazendo necessária a coleta, sob pena de estragarem com o tempo.
Desafiados a encontrar seus ninhos, o povo do campo criou lendas esquisitas a respeito do capote.
Uma delas é que somente algumas pessoas são predestinadas a encontrar seus ninhos misteriosos. A outra é que, encontrados os ovos, não podem ser manuseados com a mão nua, mas sempre por intermédio de uma colher. Se a simpatia não for executada desta maneira as aves abandonam o ninho.
Por várias vezes observei as pessoas ditas predestinadas a encontrar os ninhos. Nada de metafísico: apenas desenvolveram uma técnica especial de rastreamento, conjugada com a experiência de contato com o comportamento do animal.
O capote, assim como outras aves, tentam despistar os predadores de seus ovos, reunindo-se em pequenos bandos, nos arredores do local onde fixam seus ninhos. Distribuem-sem enquanto perambulam em busca de alimentos, confundindo o invasor. Tanto mais se aproxima o intruso, eles despistam, deslocando-se para longe do ninho.
Resta ao proprietário rastrear com detalhe minúsculas veredas nos matos, deixadas pelas poedeiras, até onde ficam os ovos. Fazer tudo isso exige não apenas perícia, mas muita paciência. Por isso os bons caçadores são os mais solicitados para encontrar os ninhos dos capotes.


sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

TEMPO DE CHUVA

Não há tempo melhor, quando começam as chuvas.
Em poucos dias a paisagem se transforma. Os galhos ressequidos de arbustos e árvores que hibernam brotam folhas verdíssimas.
O capim se alastra, as estradas do interior ficam enlameadas, os rios e igarapés enchem.
Quando menino, as chuvas começam por volta do dia de finados. Hoje tarda um pouco mais. É a mudança do clima. 
Era a oportunidade para tomar banho de chuva, nos beirais e na rua. Fora isso, os dias eram compridos, as chuvas intermináveis.
Da janela eu contemplava as corredeiras de água da chuva, descendo a linha das calçadas. A alternativa era fazer barquinhos de papel e vê-los descendo rua abaixo.
Os rios subiam para as casas e muita gente entrava em desespero. 
Também era o tempo das grandes pescarias, coisa que só viria experimentar um pouco mais tarde, na companhia de meu pai.
A tromba d'água trazia os cardumes de peixes, apressando os pescadores em armar redes, ao longo dos remansos burbulhentos.
No Parnaíba era comum o rio desbarrancar e acidentes ocorrerem com embarcações. Em Balsas vi a força das águas arrancando árvores pelas raízes.
Os rios intumesciam, avolumavam nos leitos, tragavam detritos e os arrastavam nas correntezas enlouquecidas.
Os acampamentos dos pescadores ficavam melancólicos, as águas do céu silenciavam os caboclos, acocorados, pitando seus cigarros de fumo de corda.
Na hora de despescar, as canoas cortavam as águas com dificuldade, mas o peixe que se debatia era graúdo, arrastado desde as cabeceiras, no fundo dos grotões mais distantes.
Esperando a hora de voltar para casa, eu olhava hipnotizado para as gotas de chuva rolando nas folhas das árvores, deitadas sobre o leito do rio.
O inverno depois me traria uma outra experiência de viajante, no mundo das rodas traçadas: a do carro atolado. Durante as chuvas, mais difícil do que manter o carro nas estradas - lisas como sabão - é saber retirá-lo da lama, com os eixos assentados, grunhindo e chiando sem forças para arrancar-se da bitola pegajosa.
E algumas vezes tive que dormir no mato, no meio dos caminhos lambuzados, atacado por insetos, até que a ajuda chegasse. Quem viajou para a região do Baixo Parnaíba, antes da chegada do asfalto, saberá do que estou falando.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

RIO BALSAS

Afluente do Parnaíba, o Rio Balsas também está presente na memória da minha infância.
Rio estreito, mas de correntezas fortes, corta a cidade do mesmo nome, no sul do Maranhão.
Onde corta a cidade, é utilizado por seus moradores para o lazer, ao longo de seu leito, povoado de bares e restaurantes.
Quando menino, lavadeiras de roupas compunham sua paisagem, com seus cânticos, sentadas nas tábuas, onde esmurravam as peças de roupa, em estalidos secos e persistentes.
A ponte sobre o rio, de madeira, era o trampolim dos  meninos livres. Compunha um repertório de travessuras permitidos pelas águas faiscantes do rio, no sol do verão.
Câmaras de pneus desciam o rio freneticamente, tangidas pelos gritos de alegria. Os comboios de crianças atravessavam o rio a nado, calculando a distância para sair do outro lado, por conta da forte correnteza.
Eu fui menino adestrado pelo rio, fugindo aos olhos vigilantes dos pais para me jogar naquelas águas turvas e perigosas. Não poucos meninos foram tragados pelas corredeiras traiçoeiras.
Mas, passada a comoção inicial, voltavam as brincadeiras, sob os olhos preocupados dos adultos. Ninguém conseguia manter a meninada longe do rio e os adultos sabiam que nós apenas estávamos cumprindo o destino de todas as gerações nascidas sob os auspícios do grande e majestoso rio.
Além dos saltos ornamentais de cima da ponte, o rio convidava para desafios maiores. A travessia a nado era pouco, quando se via adultos exímios nadadores e mergulhadores. Lembro de um surdo-mudo que atravessava o rio mergulhando de um só fôlego. Que inveja. 
E havia os tarrafeiros, filhos dos pescadores, que, ainda meninos, atravessavam o rio com o petrecho de pesca nas costas. Chumbada nas bordas, a tarrafa podia representar quase o peso de uma criança.
Eles chegavam exaustos, seguindo os pais, orgulhosos da façanha que poucos se atreviam.
Com meu pai, em pescarias menos ousadas, repeti por fim a travessia, com a tarrafa a tira colo. Minha mãe nem sonhava com essa travessura. Mas era nos remansos do rio que buscávamos o peixe, sem medo dos garranchos espinhosos e das raivosas piranhas que vinham buscar o pescado enredado na rede.
Mais medo eu tinha do esporão do mandi, dormindo no chão do rio, embora nem de longe fosse comparável ao ataque da raia.
Nunca vi ninguém usar botas ou luvas em pescaria. E a lanterna cegava o pescador, de olhos acostumados na penumbra. 
Se você nunca comeu peixe assado com farinha na beira de um rio, não pode saber do que estou falando.
O rio Balsas é testemunha. Acredite.


AS ONÇAS

Estórias de onças sempre estão presentes nas narrativas dos sertanejos.
Bicho misterioso, cercado de lendas, compunha sempre o repertório obrigatório das conversas noturnas, embaladas em redes ou em velhas cadeiras de balanço.
Os episódios ocorriam na ambiência das fazendas, onde o bicho atacava as criações, desde a perspectiva de caçadores ou criadores. Por isso, era sempre um animal sanguinário, traiçoeiro e sujeito ao extermínio.
Para valorizar o extermínio da onça, ali estavam os caçadores especializados na arte de caçar e rastrear o felino, com seus cães heroicos e corajosos.
A onça protagonizava ataques a comitivas, comia reses e lutava com caçadores, alguns destacados pela coragem de abater a bicha à faca, em confrontos memoráveis.
Nesse tempo, a presença numerosa das onças nos arredores das propriedades era uma realidade. Ouvi muitas dessas estórias, com um certo arrepio de pânico, porque acompanhava meu pai em pescarias e caçadas.
As pescarias eram o forte do meu pai. Lembro das noites nos rios, das nuvens de insetos, dos acampamentos em dias de chuva, redes armadas nos remansos. Nessas ocasiões, a lembrança da onça me fazia assustar a cada movimento nas folhagens, a cada sussurro do vento nas palmas tatalando.
Perto dos pescadores, armava a rede para passar a noite, de olhos grudados na floresta ao lado. Tinha sempre a impressão de que a onça poderia aparecer a qualquer momento.
Uma única vez tive oportunidade de ver a onça nas minhas andanças pelo mato. Foi um encontro furtivo, mas valeu a pena. Eu e mais dois amigos andávamos numa vereda estreita, paralelamente a uma cerca de arame, que guarnecia uma pastagem. 
De repente, alguém avisou: - lá vem uma onça!!
Estacamos todos de uma vez, com olhos e boca arregalados. Longe, na nossa direção, um felino amarelo-queimado trotava sem perceber a nossa presença. Era uma suçuarana, depois vim a saber.
Sussurramos entre nós e adentramos o mato, na borda da vereda, sem tirar o olho da onça. Ela se aproximava no mesmo trote, visão baixa, até que nos pressentiu. Parou e fixou o olhar na nossa direção. Gelamos o sangue. Foram segundos em suspense. Como um raio a onça pulou para fora da vereda e ganhou o mato, desaparecendo.
Ficamos estáticos por um tempo, até recobrar o dom da fala.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O SERTÃO

Uma das minhas mais antigas lembranças do sertão é da cidade de Riachão.
Meu pai tinha amigos, em todos os segmentos da pequena cidade; de sertanejos pobres até proprietários de grandes vastidões de terras.
De vez em quando gostava de visitar esses amigos, via de regra, compadres e comadres. Os que não estavam unidos pelo vínculo religioso muitas vezes recebiam o mesmo tratamento de "compadre"/ "comadre".
Lembro de muitas visitas a lugares distantes, ligados por estradas de chão, onde moravam sertanejos idosos, com suas esposas e filharadas.
Tocavam suas fazendas e suas criações, no manejo tradicional, soltos no carrasco, ao Deus dará, adaptados ao ecossistema e ao clima.
Lembro dos currais precários, de paus retorcidos, o gado miúdo, de berro alongado, enfileirando o passo por entre veredas de vegetação baixa e ressequida.
Ao meio-dia, sol a pino, o almoço era servido aos visitantes, na mesa comprida de tábuas de madeira de lei, escurecida pelo tempo. 
Copos de alumínio, água de pote, doce de buriti ou bacuri, sucos de frutas da época, carne de sol, paçoca, ovos, macaxeira, tudo o que convém para a abastança.
Sonolentos e empanturrados, vínhamos para a varanda, onde redes grandes e avarandadas nos esperavam, agitadas pela brisa de verão.
Ainda se tinham forças para balbuciar alguma conversa, pontuadas pelo trilar de um bando de capotes irrequietos.
A gente ouvia o sino dos carneiros, compassado, como que embalando a rede. Aqui acolá um canto de galo, embaixo das fruteiras. 
A conversa ia se perdendo, no eco dos grotões, silenciada por revoadas de periquitos prenunciando o tempo de manga.
O cochilo era profundo, na paz dos porcos na lama.

O CAPELOBO

Quando eu era pequeno, nada me assustava mais do que estórias do Capelobo.
Na cidadezinha, sul do Maranhão, havia de fato um hábito entre os moradores de contar estórias.
Não havia TV e a cidade adormecia depois das cinco horas da tarde.
Traziam as cadeiras para a frente das casas, os vizinhos se achegavam, tranquilamente; alguns pitando cigarro, arrastando a garganta; outros sem camisa, ou camisa semiaberta no peito, aproveitando a brisa do final da tarde.
Se a conversa se prolongava, as visitas renitentes, traziam depois uma garrafa de café. Não poucas vezes o galo cantava e a conversa ainda estava em andamento.
As crianças ficavam ao redor das cadeiras, até a hora de dormir, pescando o que podiam das estórias.
Quando o assunto era o Capelobo, meus olhos arregalavam e eu buscava logo o colo do meu pai.
O Capelobo é uma espécie de monstro, que assombra as pessoas na floresta com seus gritos. Dizem que é peludo, como um macaco, mas anda como um homem.
Seus gritos podem ser confundidos com os de um ser humano. Caçadores que respondiam ao grito, como é costume na comunicação dos nativos, na verdade, atraíam o monstro.
Havia muitos testemunhos de quem avistara o Capelobo, nenhum presente. Era sempre um parente, um amigo, um conhecido, um caçador das bandas de tal ou qual região...
Os relatos eram verossímeis para uma criança, mas para os contadores de estória mais do que isso. 
Fazia parte de uma tradição na arte de mentir, confirmada e reconfirmada por todos à volta. Ninguém tinha o direito de duvidar.
E quando, no adiantado da noite, minha mãe me chamava para dormir,  já imaginava o medo que tomaria conta de mim, até que o sono profundo me roubasse a realidade.
A cada ranger das escápulas meu corpo estremecia na rede avarandada. 
Meus olhos grudados no telhado da casa imaginava o gigante peludo arrancando os arbustos e uivando penosamente na imensidão das florestas do sul do Maranhão.
E outras noites viriam, novas estórias seriam contadas, com aquela pachorra de sertanejos, cada pausa para um gole de café ou uma baforada de cigarro, apenas um trejeito para puxar pela memória.
As estórias que eu guardo hoje são névoa, perdidas no céu estrelado, onde a lua guarnecia as sombras de homens taciturnos, sentados na varanda da casa.




segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O CURRUPIRA NOS LENÇÓIS

No litoral oriental maranhense fui chamado para tratar do assunto envolvendo as comunidades do Parque Nacional dos Lençóis.

Cerca de 155 mil hectares, 2/3 ocupados por dunas alvas, incandescentes no sol a pino, pontilhadas por lagoas que se formam no período chuvoso.

O Parque Nacional atinge três municípios da região, Barreirinhas, Primeira Cruz e Santo Amaro, principalmente comunidades tradicionais na zona rural.

A Unidade de Conservação foi criada pelo Decreto Nº 86.060, publicado em 2 de junho de 1981, em plena ditadura militar. À revelia da presença das comunidades tradicionais ali instaladas, desde o início da colonização, criou-s-e uma unidade de conservação de proteção integral, o que posteriormente se configurou numa ameaça permanente de expulsão dos moradores.

Com a criação do ICMBio, contraditoriamente à simbologia dos nome, os comunitários passaram a ser perturbados pela fiscalização do órgão, impondo normas e controles incompatíveis com a permanência e reprodução dos povoados.

Para orientar soluções é que fui acionado, participando de várias reuniões e montando com os moradores e o sindicato de trabalhadores rurais uma estratégia jurídica de médio e longo prazo.

Nesse percurso de viagens aos povoados é que me deparei com uma história curiosa, nos confins da Tratada de Cima, povoado próximo à famosa Lagoa Bonita.

Nesse povoado vivia um irmão de meu anfitrião, Ivan Cabral, diretor da FETAEMA (uma federação de sindicatos de trabalhadores rurais). Ali fazíamos nosso pouso de viagens cansativas, por dentro do areial e das dunas, em veredas por vezes estreitas, por vezes amplas e descampadas, entrecortadas por riachos de águas cristalinas.

No limiar do sono, balançando o corpo na rede armada, ouvi o morador dizer sobre um achado estranho. Segundo ele, seu cavalo teria aparecido com as clinas trançadas em forma de estribo. Isso teria acontecido outras vezes.

Daí a conversa descambou para a lenda do currupira, um ser encantado das nossas matas. Desde menino os maranhenses são assombradas pelas histórias do currupira, um menino de peludo, de pés virados para trás, que se apresenta como protetor da floresta.

Para os moradores, a clina do cavalo trançada era uma prova concreta da existência desses seres, visto que ninguém conseguiria fazer isso com um cavalo arisco como aquele, e não haveria necessidade, porque somente uma pessoa muito pequena poderia se servir daquele estribo.

E antes de encerrar a conversa, a lua já oscilando no céu estrelado, lembrei a todos da estória do "gritador", um ser estranho que assombrava os moradores de Araióses, cidadezinha nas proximidades do Delta do Rio Paranaíba. 

Essa estória eu pretendo contar depois, tomando goles de café de bule, de preferência.





Sobre médicos cubanos.


Apenas um simples testemunho. Numa das vezes que me desloquei para a terra indígena Alto Turiaçu, a viagem não foi menos cansativa.
De Zé Doca até a aldeia do Gurupiúna, da etnia Ka'apor, o percurso é sofrível. Árvores e arbustos ressequidos tombados sobre a estrada de chão é regra.
Veredas que vão se estreitando, à medida que se adentra ao território indígena, ladeadas por grandes árvores, entrecortadas por córregos e pontes precárias e improvisadas. 
A impressão que se tem é de percorrer uns 100km, mas o trajeto é bem menor, até a aldeia.
No inverno tudo fica mais difícil, claro. As estradas cortam pela força das águas ou simplesmente se transformam em grandes charcos de lama.
Em várias aldeias do território sair do isolamento no período chuvoso exige que se nade. Isso mesmo.
Nesse dia, cheguei de madrugada na aldeia, uma área de proteção (que os Ka'apor chamam Ka’a usak ha). Na borda do aglomerados de casas, uma pinguela improvisada, cortando o rio Gurupíuna, iluminado por um luar oportuno.
Cruzando a pinguela, avistei dois homens, canoa, abaixo, numa pescaria silenciosa, de penumbras. Pela conformação física, um deles não reconheci. Grande e negro, remava.
Deixei a curiosidade para o amanhecer e tratei de cochilar nas poucas horas que me restavam até o sol sair, sabendo que, depois disso, ninguém dorme mais na aldeia. Minha rede nessa hora parecia a cama de um rei.
De manhã, o homem se deixou avistar na reunião, furtivamente. Espiou os presentes rapidamente e foi para um outro barracão. Um indígena respondeu ao meu olhar curioso: era um médico Cubano.

NINHO DE CAPOTE

A galinha d'Angola veio da África trazida pela colonização portuguesa. Adaptou-se com facilidade ao país e hoje está presente em todas ...